João Afonso agita com força o isqueiro branco da Bic no ar. Roda-lhe a pedra e dá faisca mas continua a não sair lume. levanta o isqueiro a altura dos olhos e verifica-lhe o nível de gás no contra-luz da rua. Encontra-se no Hall de entrada da pastelaria Nova Falagueira na Amadora. O dia é solarengo, o primeiro em que o astro que comanda a vida espreita neste ano de dois mil e dezoito, uma aberta aos dias frios e húmidos como o são sempre todos os de janeiro, exceto, recorda, os primeiros doze que dizem os antigos, cada um desses variar no clima variação essa que corresponde à previsão de cada um dos meses seguintes do ano. Este dia de Reis era solarengo portanto, e confere, junho seria um mês normal. Larga a fumaça solta pelas narinas. Abotoa o casaco com frio e olha para o cão preso pela trela no poste em frente que avisa quem por ali passa que esta é uma zona com vídeo vigilância, para segurança das pessoas, bens e prevenção criminal, lê-se. A Amadora não é de facto uma cidade pacífica. O cão esse não tem frio. Um Serra da Estrela de pelo comprido, cor fulvo lobeiro, com o sangue quente, uma boa dose de camada de gordura no próprio couro cabeludo, e com o seu manto de pelo lustroso, procura sempre os pisos mais frios para se deitar ou fica a sombra, não fosse ele concebido para sobreviver a invernos inteiros ao relento em ambiente de temperaturas negativas da serra que lhe dá nome à raça.
Olha o Tarzan! Dispara uma voz do canto da avenida. Tarzan! Oh conas, não vês que ele está preso ao poste da polícia, retorquiu uma segunda voz. Eram três gaiatos. Eu bem te disse que ele era cão polícia. Os ciganitos na ordem dos seis, dez, e treze anos fazem festas ao Herói que agora se levantara. Olha, como é que se desata isto? Psst, está quieto, pensas que estas em casa? Interrompe João Afonso na sua pausa de cigarro à porta da pastelaria. Os ciganos viram-se para trás com cara de cu sem saber o que dizer ao homem mas o mais puto e reguila de todos não perde tempo. Ah senhori, este cãoé é meué. É teu? Desde quando? Esse cão é meu. E não se chama Tarzan, chama-se Herói. É meué é, que encontrei-o abandonado noutro dia, até o prendi no acampamento com um cordeli e tudo mas ele arrebentou-o e saltoué o muro, e olhe que o muro é mais alto que você! e fugiué.
Com que então foste tu! Bem o podia procurar toda a tarde e noite dentro. E tu com ele preso. Este cão é meu, não viste que tinha coleira? Fugiu-me, estávamos a passear e nunca mais o encontrava. Se mais alguma vez o virem sozinho pegam nele pela coleira e vão-me tocar à campainha no prédio alí atrás em frente ao supermercado. Entendido? Sim senhori. Mas podemos brincar com ele? Podem. Oh senhori, porquê ele está preso a este poste da polícia, ele é cão polícia, perguntou o mais velho. É, responde Afonso. E o senhori é polícia? Sou. Portanto cuidado! Vês, eu não vos disse que era cão polícia! Eu já o tinha visto uma vez numa rusga que fizeram ao acampamento!
João Afonso dá uma gargalhada com vontade. Mal sonham os ciganos que o Herói ainda nem tivera tempo para grandes rusgas na cidade de há tão poucos dias que ali chegará.
A história do João e do Herói é ainda muito curta, nem sequer tem ainda uma semana, mas o canídeo já domina o território. Herói é um cão nobre, possante de movimentos e atitude, de fazer alguns transeuntes mudar de passeio quando o avistam à distância. É ao mesmo tempo o cão mais doce e carente de mimo que João Afonso algum dia conhecera. Ao mínimo descuido, à menor das oportunidades, o Serra da Estrela fugia e passava tardes inteiras nas suas pesquisas de rua. Foi o que fizera ao dono dois dias antes, que o deixou desorientado toda a tarde e serão dentro, à procura dele pela cidade e que não o encontrava. Pudera, afinal por um cordel estava preso. Era já meia noite quando se preparava para deitar numa noite que já a imaginava em branco preocupado com o paradeiro do cão, quando, numa última e derradeira tentativa do dia volta para trás largando a maçaneta da porta do quarto. Calça as botas, pega no chapéu de chuva e nas chaves e desce as escadas do prédio. Última tentativa, última ronda do dia, se não aparecer amanhã logo se vê, há-de lhe dar a fome, sabe onde tem comida. Será? Absorto nos pensamento Afonso abre a porta de saída do prédio, da dois passos em direção ao carro, e, pasme-se, fica intacto com o chápeu de chuva em posição de quem ia ser aberto, mas que se foda a puta da chuva. Deus me valha! Héroi, cabrão! Isto faz-se? O Serra da Estrela levanta a cabeça, olha para João Afonso, deixa cai-la de novo no chão onde estava prostrado, ao lado da roda esquerda do carro de João Afonso, visivelmente combalido. João Afonso analisa-o, tem medo que tenha sido batido pelo sôfrego trânsito da cidade. Herói não se levanta nem quando para isso é mandado. Apalpa-lhe todo o corpo, parece-lhe bem. João ajoelha-se ao seu lado, abraça-o pelo pescoço, beija-o e chora. Já sabes quem é o dono, caralho.
O cão apodera-se do coração do João naquele instante, ao fim de quase uma semana de convívio, mas a história do Herói e Afonso era outra e bem mais antiga. E o cão não o sabia.